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31 de mar. de 2011

Artigo: A ficha limpa e o Supremo

“Longe de haver chegado à “única solução possível”, o STF fez uma opção interpretativa, tendo para isso que fugir à lembrança dos seus próprios precedentes”
Márlon Reis*

O Brasil acompanhou na última quarta-feira a sessão do Supremo Tribunal Federal que adiou a aplicação da Lei Complementar nº 135/2010, conhecida como a Lei da Ficha Limpa.

Duas teses estavam em disputa, vencendo por um voto a concepção segundo a qual o art. 16 da Constituição Federal impediria a aplicação da referida lei às eleições ocorridas em 2010. Esse entendimento – por vezes apresentado como a única interpretação possível para a referida norma constitucional – está longe de traduzir o pensamento da maior parte da comunidade jurídica.

Diz o art.16 da CF que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Lido de modo apressado ou – o que dá no mesmo – interpretado literalmente, o artigo transcrito pode levar o seu aplicador a ignorar o sentido da determinação constitucional.

O art. 16 foi introduzido na Constituição de 1988 a fim de impedir a reiteração de uma prática censurável presente em vários momentos da nossa história: a edição, às vésperas dos pleitos, de leis contendo alterações no sistema eleitoral, a fim de surpreender as oposições. Trata-se de uma garantia voltada a assegurar aos participantes da disputa eleitoral pleno conhecimento das regras que imperarão na contenda.

Deve-se evitar a tentação de incluir na expressão “processo eleitoral” tudo quanto se passa durante o período em que ocorrem as eleições. A Constituição da República utiliza a expressão “processo eleitoral” no sentido de “sistema eleitoral”, entendido como o modo pelo qual a manifestação da vontade do eleitorado se converte em mandatos políticos. Uma lei que altere a fórmula do cálculo do quociente eleitoral, ou o suprima, por exemplo, altera o sistema eleitoral e deve submeter-se ao princípio da anualidade.

Assim, para que tenha incidência o art. 16 da CF, é imprescindível que a inovação legislativa implique alteração no sistema eleitoral.

A Lei da Ficha Limpa nada dispôs acerca do vigente sistema eleitoral. Ela apenas deu cumprimento ao contido no art. 14, § 9°, da Constituição da República, que ordena ao legislador complementar que estabeleça hipóteses de inelegibilidade baseadas na vida pregressa dos candidatos. Suas regras não geraram surpresa para maiorias ou minorias partidárias, alcançando a todos de forma igualitária com comandos que determinam o afastamento do pleito de pessoas incursas em cláusulas objetivas de privação do jus honorum.

Em outras oportunidades, o próprio Supremo reconheceu que a simples aprovação de uma lei eleitoral no interregno mencionado pelo art. 16 é circunstância insuficiente para deflagrar a aplicabilidade desse dispositivo. Foi assim, por exemplo, quando o STF admitiu a aplicação da Lei nº 11.300/2006 (Lei da Minirreforma Eleitoral) às eleições daquele mesmo ano. Profundas mudanças haviam sido introduzidas nas normas eleitorais naquela oportunidade. Houve sérias restrições a meios de propaganda até então admitidos; o regime da prestação de contas de campanha, uma das mais importantes etapas do processo eleitoral, fora profundamente alterado.

O mais curioso é que a própria Lei de Inelegibilidades – a Lei Complementar n° 64 – foi editada em maio de 1990 e aplicada às eleições que ocorreram naquele mesmo ano. Na oportunidade, o Supremo Tribunal Federal deixou de aplicar o princípio da anualidade diante da “prevalência da tese, já vitoriosa no TSE, de que, cuidando-se de diploma exigido pelo art. 14, par. 9º, da Carta Magna, para complementar o regime constitucional de inelegibilidades, à sua vigência imediata não se pode opor o art. 16 da mesma Constituição” (RE 129392 / DF - Distrito Federal).

Juristas de grande relevo estão entre os que saudaram a inovação legal proveniente do civismo brasileiro. Em manifesto lançado no final do ano passado na sede do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, dezenas de estudiosos do Direito Eleitoral afirmaram a aplicabilidade da lei às eleições de 2010. Dentre eles estavam Paulo Bonavides, Dalmo Dallari, Fabio Konder Comparato e Celso Antônio Bandeira de Mello.

Além da Ordem dos Advogados do Brasil, todas as representações nacionais de magistrados e membros do Ministério Público acolheram esse mesmo entendimento, muito bem defendido durante o julgamento pelo Procurador Geral da República e por cinco dos onze ministros do STF.
Longe de haver chegado à “única solução possível”, o STF fez uma opção interpretativa, tendo para isso que fugir à lembrança dos seus próprios precedentes.

Resta claro, por outro lado, que se não foi admitida a aplicação da Lei da Ficha Limpa às eleições passadas, o certo é que a lei de iniciativa popular está em pleno vigor e incidirá em qualquer eleição que venha a ocorrer a partir do dia 5 de junho deste ano.

Eleições extemporâneas são uma constante na Justiça Eleitoral por serem muitos os prefeitos cassados por compra de votos. Podemos afirmar, por isso, que a hora da Ficha Limpa está quase chegando.

* Juiz de Direito no Maranhão, membro do Comitê Nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, um dos redatores da minuta da Lei da Ficha Limpa, coordenador e professor em cursos de pós-graduação, palestrante e conferencista.

Fonte : MCCE

1 comentários:

Unknown disse...

Fichinha

A correta decisão do STF de adiar a vigência da chamada Lei da Ficha Limpa suscitou muitas análises distorcidas. Como alguém pode afirmar, por exemplo, que uma legislação destinada a impugnar candidaturas não altera as regras eleitorais em curso?
A tal Ficha Limpa deveria ter sido banida no primeiro momento, antes de virar essa panacéia mitológica fadada ao limbo jurídico. Ainda que não fosse pelo escancarado vício retroativo, que viola um importante princípio constitucional, sempre foi evidente que o instrumento serviria para perseguições políticas e golpes eleitorais. Em nome de punições temporárias e inócuas a bandidos que sequer precisam de cargos para praticar suas malvadezas, toleramos as injustiças cometidas contra dezenas de Capiberibes probos, eleitos democraticamente.
Aqueles que reclamam da indiferença do Judiciário aos apelos da “opinião pública” (leia-se “grandes veículos de comunicação”) pregam a ingerência de empresas privadas sobre as decisões das cortes. O limite dessa pressão é o autoritarismo puro e simples, já evidente na pretensão a retirar do eleitor a capacidade de eleger seus escolhidos, inclusive aqueles que são reconhecidos canalhas.
Nesses momentos de histeria moralista, perdemos a chance de discutir assuntos verdadeiramente importantes. Reforma política de verdade ninguém quer, não é mesmo?

http://guilhermescalzilli.blogspot.com/